quarta-feira, 28 de março de 2012

Incubadora #1

 




INCUBADORA#1
A obra de arte é uma experiência no mundo, e não um comentário sobre o mundo1. Uma experiência e um modo de experimentar-se no mundo. O existir é para o artista uma condição singular: estar exposto ao fio da navalha do ser-estar, existência sem meio-termo. Os artistas são subjetividades vulneráveis aos movimentos da vida e sua obra é a cartografia dos estados sensíveis que sua deambulação pelo mundo mobiliza.2
É preciso que o artista, ao experimentar-se no mundo, possa reconhecer seu repertório de formas e articulá-las, para poder inscreve-las nas redes de signos e significados de seu tempo. É preciso que o artista possa produzir um novo nexo para os acontecimentos, que possa especificar as suas formas em formas-pensamento. Existe aí um espaço em que o involuntário aparece, o pensamento manifestando-se em ato, pensamento-escultura.  É apenas ao longo de sua caminhada que estas formas-pensamento lhes vão sendo reveladas e assim compreendidas. Registradas nas marcas do processo de construção da sua obra, somente então estas formas se dão a ver, elas não preexistem  em sua consciência.
Como quem habita um universo em desalinho, o artista  vai assim se movendo entre sistemas não-lineares de criação e passo a passo constrói um locus de coerência que permitirá dar visibilidade ao seu projeto poético3. O feixe de articulações determinado pela ação criadora se arma a partir de desenhos, esboços, textos, colagens, maquetes e anotações, os quais tecem uma rede de significados a partir da qual a obra vai se desenhando.
Para aquele que se coloca na posição de acompanhar o processo criativo dos artistas, trata-se de tentar desvelar para os mesmos os sentidos já existentes no seu universo: as camadas de história, de tempo, as  tendências e intencionalidades presentes nas marcas da criação, que revelam nuances do projeto poético do criador4. O movimento multidirecional do artista dá origem aos debates conceituais que vão lhe subsidiar a reflexão e a produção, trazer para a consciência o que no fluxo e refluxo do fazer permanece-lhe velado. Se há um texto existencial pré-criativo em cada um de nós, se cada um de nós é atravessado por um pensamento que nos pensa, cabe ao artista-professor conduzir o jovem artista à descoberta deste texto existencial, deste pensamento que o pensa.
A mostra INCUBADORA#1 é resultante de um ano de trabalho do grupo de pesquisa Incubadora, sob minha orientação. Reúne os desdobramentos recentes da produção de Elaine Pessoa, Eide Feldon, Gláucia Martelli e Juliana D Chohfi.
Palimpsestos Urbanos, de Elaine Pessoa, consiste numa seqüência fotográfica composta por 10 imagens (impressão fine art digital sobre papel algodão Hahnemühle 350g), as quais fazem alusão ao formato clássico da Polaroid. Segundo a artista, uma de suas questões é mostrar “o acúmulo e a sedimentação do tempo por sobreposição de imagens, memória de imagem passada sobre imagem presente. Utilizando a mídia de celular, encontro aí uma forma de registrar e manipular a temporalidade. Abordo como assunto principal a cidade e tenho como desafio as dimensões do espaço e do tempo nela apresentadas”. Sobrepostas em camadas translúcidas, as imagens capturadas do caos urbano traduzem, no amálgama que constituem, os tempos empilhados e plurais da intensa experiência contemporânea. As “falsas” polaroids que Elaine nos apresenta reclamam aquela condição da imagem instantânea da câmera fotográfica Polaroid, lembrando-nos o “quão extraordinário é ver o mundo se fazendo imagem. Ver a paisagem como se ela fosse o mundo se fazendo imagem. Ver a paisagem como se ela fosse um momento intermediário entre a miragem e a alucinação, entre a imagem que o mundo produz e a que a mente cria”.5
Eide Feldon, em Trans@locar, reúne um conjunto de imagens a partir da apropriação e deslocamento da representação do feminino no campo histórico da arte. Trabalhando com uma temporalidade distendida, Eide opera a partir da produção e do arquivamento de um número crescente de imagens, fazendo circular grandes quantidades de informação que se condensam num presente distendido,  caracterizado por um estado de hipermnésia6. Em estado de fluxo, o
excesso e a aceleração da informação nos roubam a temporalidade necessária para que a memória se forme, fazendo colapsar a nossa leitura ordenada dos acontecimentos.
Canapoesis é uma vídeo-instalação que traz imagens geradas a partir da experiência vivida junto aos trabalhadores braçais oriundos do Vale do Jequitinhonha, Minas Gerais, a 1400 km de São Paulo. Com idades entre 20 e 50 anos, estes trabalhadores procuram canaviais paulistas em busca de melhores condições salariais. Nas palavras de Gláucia Martelli, “busco criar uma tensão no limiar entre o documental e o não documental a partir de minha vivência com estes trabalhadores e das questões sócio-político e histórico-culturais envolvidas neste contexto. Canapoesis propõe reflexos fragmentados de uma paisagem composta de operários rurais e a cana. Em sua maioria, trata-se de corpos com grande vigor físico, mas alguns deles fragilizados, até mesmo chagásicos”. A materialidade da linguagem – entre o real e as nervuras da superfície luminosa – borra os limites do descritivo-documental e explora a fabricação de um outro real, produzindo uma paisagem de outra natureza. Partindo da dura realidade dos canaviais, Gláucia cria uma seqüência rítmica sem começo, meio e fim, cujo movimento aparentemente repetitivo transforma-se numa pulsação que caracteriza a ambiência hipnotizante da vídeo-instalacão.
Juliana D Chohfi mostra Dissecção, uma instalação composta de um sudário e de uma vídeo-performance.  Para Chohfi, trata-se de “dois corpos que interagem inicialmente com sensualidade e, num segundo momento, com gestos brutos, buscando desconstruir o corpo ideal e imortal – o corpo universal. Dissecção consiste numa ação em que um busto de argila feminino foi dissecado sobre uma mesa coberta com um pano branco, numa sala de paredes brancas”. A jovem artista explora, na transmutação de um corpo modelado em argila para um corpo dilacerado uma erótica que entendemos como limítrofe. Aproximando-se das atuais discussões acerca da questão do corpo e da subjetividade, não somente na arte como também na cultura contemporânea, esse corpo como despojo que Chohfi nos apresenta aponta em direção a um erotismo no qual se observa, citando Bataille, uma “afinidade fundamental entre a pulsão sexual e a morte”.
Num tempo em que a modernidade criou um excesso de exterioridades, o acesso à totalidade do processo criativo destas artistas e a construção de espaços de diálogo tem garantido ao grupo Incubadora preservar-se num mundo onde tudo está exposto. É preciso reencontrar as esferas dos espaços íntimos, espaços de vibração. Uma filosofia do espaço íntimo só pode ser pensada em termos de binômio (eu só existo na relação/dependência de um outro)7. Estamos falando aqui de espaços relacionais. O grupo Incubadora propõe um espaço em que estas trocas se tornam possíveis e se transformam numa realidade vivencial.

Regina Johas
16 de fevereiro de 2012

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2 ROLNIK, Suely.
3CIRILLO, José. Arqueologias da criação: um olhar através do processo.  José Cirillo  é pesquisador e professor do Centro de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo e    Coordenador do Laboratório de Estudos e Ensino da Arte.
4Idem.
5GARCIA DOS SANTOS, Laymert. Politizar as Novas Tecnologias. São Paulo: Editora 34, 2003.
6SELIGMAN, Márcio. “Espaço, Aceleração e Amnésia: A Arte como dispositivo de (re)inscrição”, palestra apresentada no Simpósio Espaço, Aceleração e Amnésia. São Paulo: Paço das Artes, 2007.
7 SLOTERDIJK, Peter. Esferas I. Madrid: Ediciones Siruela, 2003.

Eide Feldon


Elaine Pessoa


Gláucia Martelli


Juliana D Chohfi


A exposição INCUBADORA # 1, com abertura no dia 29 de fevereiro, às 19 horas, estará aberta ao público entre os dias 29 de fevereiro a 17 de março, das 14 às 17 horas, sábado das 10 às 13 horas na Galeria VEREDAS-SP, localizada em Pinheiros, na Rua Lisboa 328, tel. 3081 3505, veredas@veredas-sp.com,  www.veredas-sp.com.








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